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Encarando Conflitos...




Sua visão tornar-se-á clara, apenas quando você olhar para dentro do seu coração. Aquele que olha para fora, sonha; aquele que olha para dentro, acorda.

C.G. Jung


A não ser que haja uma revolução interior, nada de novo poderá florescer.

            Adyashanti, The Way of Liberation



Imagino que muitos leitores possam ter se atraído por este texto com a esperança de encontrar uma fórmula mágica pra se livrar ou resolver os conflitos com o outro, seja ele o vizinho, algum familiar, o colega de trabalho ou qualquer outra pessoa com quem não conseguimos nos relacionar bem.  É bastante comum acharmos que a origem do conflito se encontra no mundo exterior, fora de nós, e que o outro é sua causa. Como dizia Sartre de forma irônica, mas incrivelmente atraente, "o inferno são os outros". Mas, e se considerarmos a desagradável hipótese de que o conflito que vivemos fora surge, na verdade, a partir de um conflito interior, do qual frequentemente não temos consciência? É precisamente com o intuito de refletir sobre esta hipótese que me leva a escrever este texto. A ideia de que a maioria dos meus conflitos é interna, e eu não tenho a menor ideia de quais são eles não é agradável, mas como veremos, pode ser incrivelmente libertadora e empoderadora.  Só nos resta então uma possibilidade: olhar para dentro de nós mesmos para investigá-los e, quem sabe, aprender (a lidar) com eles.


Este texto é o resultado de algum tempo de reflexão, tanto em minha vida pessoal quanto no consultório, mas tomou uma forma mais concreta a partir de uma interação recente que tive com meu filho de treze anos e que me trouxe mais luz sobre o tema. Numa daquelas tantas noites nesta fase de início de adolescência, eu perguntei se ele havia escovado os dentes. Foi aí que, num desabafo irritado e sofrido, ele me disse que detestava escovar os dentes e que achava aquilo um "saco".  Eu respondi que era chato mesmo, mas que na vida havia coisas que a gente queria mas que tinham um custo. Foi quando ele soltou a pérola: "Eu não quero escovar os dentes, mas eu preciso!" Neste momento não pude evitar pensar sobre que entidade estaria ali que o obrigava a escovar os dentes sob pena de uma punição ou um castigo, levando-o à fala do 'eu preciso'. 


A verdade é que é muito mais fácil projetar a responsabilidade fora, em alguém ou em alguma entidade oculta, do que olhar para dentro de nós mesmos. Naquele segundo, fisgada pelo típico condicionamento humano de projetar a culpa no outro, me senti compelida a buscar, junto com ele, um algoz externo para aquele mal estar. Mas meus longos anos de dedicação ao trabalho de análise e reflexão pessoal me acordaram da zona de torpor emocional e me devolveram alguma lucidez momentânea para tentar elaborar aquela situação de uma forma mais madura. Foi então que eu perguntei a ele: 


- Espera aí, você precisa? Precisa como? Quem está te obrigando?

- Ah, ele disse, se eu não escovar os dentes eles vão ficar amarelos.

- E...? - perguntei.

- E é horrível, eu não quero ficar com os dentes amarelos - respondeu ele possivelmente pensando nas meninas da escola que, nesta idade, começavam a ter algum impacto em suas decisões. 

- Ah, então é você quem QUER escovar os dentes, porque vc QUER ter dentes bonitos..., não é mesmo?


A princípio, seguiu-se a negação, a resposta favorita dos adolescentes, e, na verdade, de todos nós, quando temos dificuldade em aceitar algo que nos exige assumir a responsabilidade sobre nossas atitudes e escolhas. Mas, depois de algum tempo de conversa e um pouco a contra gosto - pois ele começava a sentir que ia acabar tendo que assumir alguma responsabilidade sobre aquela história - ele foi percebendo que de fato havia ali um conflito, mas que não se tratava de um conflito entre o desejo dele e o desejo de uma entidade externa malvada que o forçava a fazer coisas contra sua vontade. Tratava-se, na realidade, de um conflito interno de um menino que queria, ao mesmo tempo, jogar vídeo game e ter dentes bonitos (viva a adolescência!).


Sem dúvida, eu pude enxergar e elaborar este acontecimento de forma infinitamente mais rápida e fácil por se tratar do processo de uma outra pessoa e portanto situado 'fora de mim'. Quando nós é quem temos que enxergar nossos auto-enganos ou mentiras, a questão se torna muito mais complicada e desafiadora. O olhar externo pode efetivamente nos ajudar neste caminho, mas, ao frigir dos ovos, cabe a nós, e apenas a nós, aceitar ou não a verdade e assumir o custo do processo de auto-responsabilização. Se isso é feito, abrimos uma nova via que pode desaguar na transformação e amadurecimento pessoal. 


Estes momentos conflitantes ocorrem com frequência em nosso dia a dia pelo fato de sermos seres complexos, cujos múltiplos desejos e valores tendem a entrar em choque dentro de nós o tempo todo.  Estas difíceis situações de conflito, quando não encaradas de frente com consciência e auto-reflexão, nós levam a projetar parte do conflito fora de nós mesmos e culpar o outro. Às vezes, culpamos até Deus, a vida ou o azar, na busca de um certo alívio imediato: "Ufa, não tenho que lidar com isso já que não é minha responsabilidade." Mas, por outro lado, logo nos vemos numa situação de terrível impotência perante a vida, pois a responsabilidade que é projetada no outro fica com o outro. A impotência, por sua vez, traz paralisia, agressividade, raiva, inveja, auto-piedade, depressão ou crises de ansiedade.  E pronto, estamos num corner, feito um bicho acuado. Isso acontece porque, junto com a responsabilidade, delegamos ao outro a nossa energia vital. E sem energia vital, nos perdemos de nós mesmos. É, portanto, fundamental que retomemos nossos próprios conflitos e as responsabilidades que projetamos no outro para poder também resgatar nossa potência e energia de vida. Mas, e agora? O que faço com meus conflitos de volta e o terrível mal estar que eles me geram?

Permanecer no conflito é um grande esforço e, sem dúvida, bastante angustiante. Mas nossos conflitos são a trilha para nós mesmos, a trilha que pode nos levar para mais perto de quem somos, de nossa essência, de nossa alma.  Eles nos ajudam a sair do domínio bidimensional redutivista do ser para abrir caminho para uma visão interior multidimensional e muito mais realista que busca representar as criaturas complexas e contraditórias que somos. Temos muitas pessoas dentro de nós, ou como disse sob grande inspiração o poeta americano Walt Whitman, "Eu contenho multidões", em seu lindo poema Song of Myself, Parte 51. Atender a todas estas personagens é vital mas poderá nos trazer inevitáveis conflitos. "Se as figuras do inconsciente não forem reconhecidas como agentes espontâneos nos tornamos vítimas de uma crença unilateral no poder da consciência levando, finalmente, à uma tensão aguda". C.G.Jung CW 13 par. 62.


Posto desta forma começamos a ver o lado bom e necessário do conflito, aquele que pede de nós uma reflexão mais profunda sobre o que nos é realmente importante naquele momento da vida. A que 'voz interior' vou servir? Tenho que servir a uma única voz ou demanda interior, ou posso servir a mais de uma ao mesmo tempo? 


Ao explorar o caso do meu filho podemos concluir que até então ele vinha atendendo sem maiores dificuldades à sua demanda por prazer, mas que, ao chegar na adolescência as coisas mudaram. Outras demandas interiores surgiram ou cresceram, como o desejo de ser bonito, com dentes brancos e limpos, o que gerou um enorme conflito dentro dele. A partir daí, duas vias possíveis se abrem. Sem a conscientização do conflito ele tenderá a brigar com a vida 'malvada' que exige dele coisas injustas, cultivando raiva e impotência. Alternativamente, ao se conscientizar do surgimento de uma nova demanda interna ele poderá aceitar que escovar os dentes faz parte de um novo desejo dele, e assim conseguir fazer o movimento necessário para acomodá-lo entre os demais desejos de seu universo interior.


Assim como a vida está em permanente transformação, nossos conflitos também são mutáveis, dependendo do que estamos vivendo em um momento ou outro da nossa jornada pessoal.  Uma pessoa que acabou de ter filhos pode se ver no conflito de querer sair à noite mas sentir a obrigação de ficar me casa para cuidar do filho, ou alguém cujos pais estão velhinhos se encontra dividido entre o desejo de ir morar no exterior e a necessidade ou obrigação que sente de cuidar dos pais.  Conflitos são, na verdade, dois desejos que servem a diferentes mestres ou pulsões internos. Para equacioná-los, precisamos investigar profundamente a sua origem e autenticidade e a partir de então decidir a quais queremos atender. Na verdade, não se trata bem de uma 'decisão'. O que acontece é que a partir da clareza proporcionada pela investigação interior, o caminho a ser tomado se elucida, e abre-se a possibilidade da acomodação de duas demandas contrárias (antes inviável)  ou da descoberta de que um daqueles desejos ou valores que eu achava que tinha, na verdade não é mais, ou nunca foi, um valor genuíno meu, e sim um valor herdado do meio, dos pais, da família ou da cultura. 


O que quero dizer com valores herdados versus valores autênticos? Um bom exemplo de valores herdados é o caso de uma pessoa jovem que deseja ser chef mas que vai estudar medicina por um desejo ou imposição da família.  Muitas vezes ela só vai perceber que o desejo de ser médica não era um desejo autêntico dela muitos anos após terminar a faculdade. Isso acontece por que sua identificação com a família era tão forte que amalgamou o desejo da família com o seu desejo de agradar à família, criando em si o desejo herdado ou indireto de ser médica. Este desejo surge a partir da necessidade imperativa e não-negociável que existe naquele momento da vida, de agradar à família para ser aceita e admirada.  Em um momento futuro, esta necessidade poderá entrar em conflito com o aparecimento do desejo de ter um trabalho que a preencha, e poderá chacoalhar o barco que a levou à antiga decisão. Se feito de forma consciente e com auto-responsabilização, a pessoa poderá compreender que se enveredou pelo caminho da medicina devido ao desejo dos pais somado à sua própria necessidade de agradar à estes. No entanto, ele percebe agora que isso a tirou do caminho autêntico da sua felicidade e realização profissional. À medida que ela vai entrando em contato com esta nova demanda, o caminho vai se tornando cada vez mais claro e ela terá que enfrentar seu próprio medo de rejeição dos pais para tentar encontrar a realização profissional.  


Caso não haja esta tomada de consciência, a pessoa tende a projetar o conflito nos pais e culpá-los por não ter conseguido ir atrás da sua felicidade profissional. E como neste caso a responsabilidade é transferida para os pais, a pessoa fica impotente sem conseguir alterar sua rota de vida, pois, afinal, foram eles (os pais) que "fizeram isto comigo e portanto só eles podem desfazer."


A questão, portanto não está em ter desejos conflitantes, pois isto todos temos e se faz necessário, por se tratar do motor de arranque para a transformação e o crescimento pessoal. Mas, só teremos acesso a este recurso poderoso se tivermos a coragem e dedicarmos o esforço para nos aproximar e investigar estes conflitos a ponto de entender sua causa interior e avaliar a real importância e autenticidade de suas facetas em nossas vidas. Ao tomar consciência de um conflito interno, tenho a possibilidade de encontrar uma boa forma de lidar com ele. Mesmo que não haja a escolha por um lado ou outro do conflito, se os valores por trás dos desejos que geram meu conflito são ambos genuínos, posso tentar acomodá-los de bom grado, pois assumo que quero servir a ambos mestres: decido jogar cinco minutos de vídeo game a menos pra dar tempo de escovar os dentes e ficar bonito para as meninas da escola. Se, no entanto, percebo que um dos lados do conflito deixou de ser um valor autêntico em minha vida tenho a chance de enfrentar velhos medos e me reposicionar interna e externamente de forma integra e responsável. E assim, posso me reconectar com a minha potência e continuar a bela jornada da vida.  


Ana Paula Garbuglio

Psicóloga


Ana Paula Garbuglio é analista Junguiana, formada pela International School of Analytical Psychology (ISAP – Zurich), 2006, e tem MBA pela Columbia University, New York, 1995.




Desde sua formação em psicologia junguiana, que teve como tese o tema ‘A maternidade como jornada de individuação’, vem atuando na área de psicologia clínica, atendendo adultos e casais na cidade de São Paulo (presencial) ou por skype, em português ou inglês.


Contatos:

(11) 97445-3593 consultório / whatsapp



"Contradigo-me?

Pois bem, então contradigo-me. 

Sou vasto.

Eu contenho multidões".

Walt Whitman, Song of Myself, Part 51

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